O Império das Corporações Profissionais

sábado, 14 de março de 2009

Esse texto foi gentilmente enviado pelo leitor Clayton L. S. Ribeiro, e, apesar de já possuir 7 anos, revela-se bem atual, em que pese se reportar à realidade de Portugal. O último parágrafo do texto chega a uma conclusão muitíssimo interessante.

Por VITAL MOREIRA
Público, Terça-feira, 4 de Dezembro de 2001 

O tema mais polémico do seminário sobre "avaliação e acreditação", promovido pelo Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior (Cnaves), foi seguramente o da "acreditação" dos cursos superiores pelas ordens profissionais. A questão é a seguinte: podem os organismos profissionais públicos (nomeadamente as ordens) contestar a formação académica dos candidatos ao exercício da profissão? 

Algumas ordens profissionais permitem-se submeter os candidatos à profissão a um exame de entrada tendente a aferir a sua formação académica, exame que, no caso de algumas ordens, é dispensado quando o respectivo curso esteja "acreditado" pela ordem profissional em causa, mediante uma avaliação "ad hoc" do plano curricular, do corpo docente, dos métodos de ensino e de avaliação. Este mecanismo de controlo, iniciado pela Ordem dos Engenheiros há vários anos, tem vindo a ser copiado por outras ordens nos últimos tempos, nomeadamente pela Ordem dos Arquitectos e pela Ordem dos Farmacêuticos, as quais conseguiram introduzi-lo na recente revisão dos respectivos estatutos legais. Isto quer dizer que o grau académico na licenciatura legalmente elegível para dar acesso a uma profissão não é aceite pela respectiva ordem profissional. 

Este procedimento suscita as maiores perplexidades, quer quanto à sua legitimidade quer quanto à sua razoabilidade. 

Entre nós, os graus académicos são títulos oficiais, sejam eles conferidos por universidades públicas ou por universidades privadas oficialmente reconhecidas. Por definição, são dignos de todo o crédito e de fé pública quanto à formação de nível superior numa determinada área de conhecimento, legalmente exigido para o exercício de uma certa profissão. Submeter essa formação a um controlo posterior de uma ordem profissional - seja mediante exame individual seja mediante acreditação dos cursos ministrados por cada escola em si mesmos - significa obviamente questionar o valor oficial, ou seja, o crédito oficial, dos graus académicos. Só se pode submeter a acreditação aquilo que não é digno de crédito. As ordens deveriam ser incompetentes para isso. 

Em segundo lugar, uma tal exigência afigura-se manifestamente excessiva sob o ponto de vista das restrições admissíveis à liberdade de profissão, constitucionalmente garantida. Na verdade, dependendo a entrada na profissão da titulação pela ordem profissional, a falha em ultrapassar o obstáculo do exame ou da acreditação traduz-se numa denegação do acesso à profissão. A vocação natural das ordens profissionais não é contudo a de controlar a formação académica dos candidatos à profissão, essa já oficialmente "acreditada" no título académico, mas sim a de lhes ministrar uma adequada formação quanto à deontologia profissional e quanto às "legis artis" e "boas práticas" da profissão (coisa estas que não competem às universidades) e, depois, proceder ao necessário controlo e punição das infracções a uma e outras. O mais espantoso a este respeito é que a maior parte da ordens profissionais não cumpre a primeira dessas tarefas elementares e poucas cumprem razoavelmente a segunda. 

O controlo das ordens profissionais sobre os cursos académicos dos candidatos ao exercício da profissão poderia justificar-se há uns anos atrás (eu próprio a admiti num escrito publicado), quando proliferava a criação de escolas de ensino superior privadas a trouxe-mouxe e de cursos de todos os modos e feitios, sem qualquer controlo prévio ou posterior da sua pertinência e valia. Hoje, porém, recuperou-se alguma racionalidade na criação de cursos e, sobretudo, está em pleno funcionamento um sistema público independente de avaliação do ensino superior, coordenado justamente pelo referido Cnaves. O que poderia justificar-se como medida de emergência em estado de necessidade tornou-se hoje redundante, por um lado, e inconsistente, por outro. Além da multiplicação das avaliações, em sobreposição do sistema nacional de avaliação, verifica-se também uma óbvia violação da separação de poderes que deve existir entre a formação académica, que incumbe às escolas do ensino superior, e a formação profissional (deontologia e técnicas profissionais), que é do foro dos organismos profissionais. A única justificação real da chamada "acreditação profissional" está em estabelecer mais um filtro à entrada na profissão, com o risco de ser instrumentalizado como um meio encapotado de limitação corporativa do acesso à profissão, em benefício dos que já lá estão. 

Isto não quer dizer que os organismos profissionais públicos não devam ter uma intervenção relevante na apreciação da pertinência profissional dos cursos académicos correspondentes (plano de estudos, duração do curso, etc.) e na avaliação do seu funcionamento (corpo docente, meios de ensino, métodos de avaliação de conhecimentos, etc.). Mas isso deve ser feito a montante, primeiro aquando da criação dos cursos, no momento do sua aprovação oficial, e depois no processo de avaliação levado a cabo pelas estruturas estabelecidas para o efeito.

Torna-se necessário inserir as ordens profissionais nos mecanismos procedimentais correspondentes, de modo a retirar qualquer pretexto para que elas se arroguem o direito de controlar "a posteriori" a formação obtida pelos graduados nesses cursos. Nessa altura, a formação académica deve ser um dado inquestionável, devendo as ordens profissionais limitar-se a verificar as credenciais académicas dos candidatos. Em vez de pretenderem controlar o que as universidades ensinam (tarefa que pertence a outrem), os organismos profissionais só devem poder avaliar aquilo que é suposto que elas devem ensinar (nomeadamente deontologia profissional e técnicas profissionais), no estágio que todas deveriam ter mas não têm. 

Esta nova esfera de poder das ordens profissionais testemunha o seu crescente protagonismo entre nós, traduzido no aumento do seu número (de 4 em 1974 passámos para 11 na actualidade), na incontinente acumulação de poderes que elas vão progressivamente conseguindo extorquir ao Estado e na crescente visibilidade que elas vão adquirindo na esfera pública, como decorre da impacto das eleições dos bastonários das mais importantes. Quando, por exemplo, um dos candidatos ao cargo de bastonário da Ordem dos Advogados inscreve tranquilamente no seu programa o propósito de realizar "auditorias às faculdade de Direito", isso não traduz somente uma singular inversão do lugar constitucional das universidades e das ordens. Traduz sobretudo o facto de que, com a prestimosa cooperação dos governos, as ordens profissionais se contam hoje entre os mais influentes centros de poder em Portugal. 

Quando o Estado é fraco e os governos débeis, triunfam os poderes fácticos e os grupos de interesse corporativos. Sempre sob invocação da autonomia da "sociedade civil", bem entendido. Invocação despropositada neste caso, visto que se trata de entes com estatuto público e com poderes públicos delegados. Como disse uma vez um autor clássico, as corporações são o meio pelo qual a sociedade civil ambiciona transformar-se em Estado. Mais precisamente, elas são o meio pelo qual os interesses de grupo se sobrepõem ao interesse público geral, que só os órgãos representativos do Estado podem representar e promover. (grifo nosso)

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